top of page

As Sociedades da África Meridional

As Sociedades da África Meridional
A presença de civilizações nativas tecnicamente avançadas e  complexas na área de Moçambique, Botsuana, África do Sul e adjacências  sempre causou um grande transtorno para os colonizadores brancos  racistas que buscaram a todo custo esconder ou alterar os indícios  destas antigas sociedades. Neste texto, uma análise de algumas destas  descobertas e a importância de seu papel.

A historiografia e o problema das fontes

A  história da África meridional apresenta muitos problemas. Por isso a  Unesco, responsável pela História geral da Africa, promoveu, em 1977, em  Gaborone (República da Botsuana), o encontro de um grupo de  especialistas em historiografia da África meridional. Devido ao  apartheid, a história dos povos negros do sul do Limpopo foi menos  estudada que a de outras populações africanas. A apartheid causou  efeitos nefastos para a historiografia da região.
"A tendência a  centrar os estudos no passado da minoria branca dominante acentuou-se  com as posições rígidas adotadas pelas universidades e editoras  sul-africanas em geral, que se recusaram a aceitar a validade de fontes  não-escritas para a reconstrução histórica".
Além disso, os  historiadores brancos da República da África do Sul recusam o concurso  de ciências como a arqueologia, a antropologia e a lingüística. Ainda  mais sério é o fato de os historiadores oficiais do país do apartheid  escolherem nos arquivos material concernente apenas aos brancos,  deixando deliberadamente de lado os documentos referentes aos povos  africanos. Para finalizar essa caracterização da historiografia da  região sob o domínio do apartheid, observemos que"os ricos arquivos  portugueses, que tanto contribuíram para a compreensão da história de  muitas sociedades da África oriental, principalmente das litorâneas,  documentos que auxiliaram no estudo da história pré-colonial das  sociedades do Zimbábue, de Angola e de Moçambique, têm sido  sistematicamente negligenciados pelos historiadores sul-africanos".
Estes  historiadores não somente rejeitam a tradição oral como fonte sem  valor, como também demonstram, em relação aos registros escritos, uma  "seletividade inquietante" e anticientífica.
Toda a literatura  histórica acumulada por quatro gerações de historiadores da África  meridional inscreve-se contra a história dos povos africanos. Não tem  sido fácil reunir a documentação para escrever esta História geral da  África, mas, no caso presente, defrontamo-nos com uma política  deliberada para ignorar, senão destruir os documentos existentes! A  negação (ativa) da cultura e da história africanas é uma arma perigosa  nas mãos dos que controlam o apartheid.
No entanto têm ocorrido  mudanças no contexto da África meridional: a independência do Zimbábue  em 1980 abriu amplo campo para a pesquisa. Também Angola e Moçambique,  desde sua independência, oferecem novas perspectivas aos estudos, que já  se iniciaram nos Estados vizinhos, como Malavi, Zâmbia, Botsuana,  Suazilândia e Lesoto; multiplicam-se as conferências e os seminários, e  há um esforço real no sentido de integrar as tradições orais.

O estágio de nossos conhecimentos

A  história da África meridional é dominada por dois problemas: em  primeiro lugar, o das datas em que os vários povos lá se estabeleceram,  ou seja, dos movimentos ou migrações dos povos; em segundo, o da  natureza do poder, que implica a necessidade de definir suas estruturas,  o que, por sua vez, remete-nos à origem dos reinos ou Estados.
Primeiramente,  deve-se dizer que as pesquisas mais recentes demonstraram a Antigüidade  do povoamento khoi-khoi na região; alguns chegam a afirmar que os povos  estabelecidos na região do Cabo eram importantes criadores de ovelhas.  No sítio de Lydenburg, no leste do Transvaal, foram descobertas  esplêndidas cabeças de cerâmica (século V da era cristã) e provas  irrefutáveis da existência de agricultura. O início da Idade do Ferro  Antiga, que terminou por volta de 1100, situa-se neste período. Usando o  método de datação por carbono-14, R. R. Inskeep situa por volta dos  anos 80+/- 20 antes da era cristã a data mais remota do aparecimento do  ferro entre o Zambeze e o Limpopo. A cultura da Idade do Ferro Antiga  propagou-se pela África meridional: as cerâmicas foram encontradas em  muitos lugares.
Por volta de 1100, começou a segunda Idade do Ferro,  ou Idade Média do Ferro, intimamente ligada às migrações dos povos de  língua bantu. Os especialistas de Gaborone, examinando esta questão,  rejeitaram a antiga teoria da migração bantu. Um grupo de pesquisadores e  o professor C. Ehret, utilizando um corpus. modificado de 90 palavras  especialmente adotado a partir das 100 palavras universais de Morris  Swadesh, estudaram as correlações entre dois grupos de línguas da área  central da África meridional. Um desses grupos compreendia dialetos  shona bem variados, falados entre o Limpopo e o Zambeze, e o outro, os  dialetos sotho, nguni, tsonga, chopi e venda, sendo este último chamado  de língua bantu do sudeste. Segundo C. Ehret, "as primeiras populações  de língua shona teriam se estabelecido no território a que hoje  corresponde o Zimbábue, enquanto os Protobantu do sudeste teriam ocupado  uma região mais ao sul, provavelmente no norte do Transvaal".
O  período entre 1000 e 1500 foi decisivo para a história da África  meridional. Novos modos de vida difundiram-se após 1100. Os Khoi-khoi  tornaram-se criadores de gado e se espalharam por vasta área. A  importância do gado também aumentou consideravelmente entre outros  povos, provavelmente de língua bantu. É nesse período, ou mesmo antes,  que se deve procurar a origem das grandes tradições culturais tão  características dos povos de língua bantu dessa região, os Sotho-Tswana e  os Nguni. Foi por volta de 1500 que se cristalizaram algumas dessas  tradições, herdadas pelos principais grupos étnicos conhecidos no século  XIX, diretamente de seus ancestrais. As mudanças influenciaram  profundamente a vida nas comunidades de pescadores instaladas na costa,  de pastores estabelecidos próximo do litoral do Cabo e de caçadores. Mas  ainda nos faltam informações sobre esse período crucial. Os testemunhos  escritos são extremamente raros e só tratam dos últimos anos do  período. A arte rupestre, de modo geral, continua sem datação e  apresenta problemas de interpretação difíceis de resolver. A tradição  oral ressente-se de referências cronológicas quando remonta a esse  período. Os dados lingüísticos ainda não foram suficientemente  explorados; dever-se-ia tentar reconstituir sobretudo o vocabulário do  antigo nguni e do antigo sotho, e seria proveitoso estudar os  empréstimos de palavras khoisan nas línguas bantu e vice-versa.
Trabalhos de antropologia comparativa sobre problemas regionais a partir de uma perspectiva temporal apenas começaram.
Sérios  problemas aparecem quando se confrontam indicações provenientes de  várias fontes, inclusive as descobertas arqueológicas. É prática usual  estabelecer-se paralelo entre uma tradição comum de cerâmica e laços de  ordem lingüística ou étnica, muitas vezes mesmo quando os indícios são  bastante fracos. Este capítulo se apoiará essencialmente nos resultados  de escavações arqueológicas, mas as descobertas arqueológicas só serão  associadas a grupos culturais e lingüísticos se os dados disponíveis  assim o justificarem. Este rigor evitará críticas, válidas para grande  parte de trabalhos anteriores: em muitos tratados e monografias  consagrados a diversos povos, a especulação é freqüentemente elevada ao  nível de hipótese douta e até mesmo apresentada como evidência.
Examinaremos  sucessivamente a evolução das línguas bantu meridionais, seu  desenvolvimento ao norte e ao sul do Drakensberg e a expansão dos  Khoi-khoi.

A evolução das línguas bantu meridionais

As  línguas bantu da África meridional pertencem aos grupos venda, sotho,  tsonga, nguni e inhambane. Apesar de antigamente alguns autores  considerarem que essas línguas e o shona constituíam uma subdivisão do  bantu, pesquisas posteriores demonstraram que tal classificação era  incorreta. O método léxico-estatístico mostra que as línguas shona,  venda, tsonga, inhambane e sotho-nguni são ramificações de mesma  importância do bantu oriental. Isso significa que a imensa maioria dos  povos de língua bantu da África meridional pertencem a um único grupo  lingüístico, distinto não somente da língua shona, mas também do venda  do norte do Transvaal, bem como do tsonga e do inhambane, do sul de  Moçambique e das planícies do Transvaal.
C. Ehret e seus  colaboradores acharam a correlação mais forte entre o venda e o shona  (55%), depois entre o tsonga e o shona (41%), seguidos do chopi (38%),  do sotho (37%) e do nguni (35%). Para eles, uma vez que os Shona e os  Bantu do sudoeste formam subgrupos distintos do ponto de vista  lingüístico, é evidente que houve dois centros de difusão das línguas  bantu para as vastas regiões do sudeste. C. Ehret e seu grupo vêem na  correlação entre o shona e as outras línguas do grupo bantu do sudeste a  prova de que o proto-nguni e o proto-sotho-tswana se difundiram  rapidamente a partir de sua região de origem, onde são faladas as  línguas sotho-chopi-tsonga, que ainda permanecem confinadas ao vale do  baixo Limpopo. O nguni e o sotho-tswana, ao contrário, difundiram-se  amplamente pelas duas vertentes do Drakensberg . A diferenciação  lingüística entre os grupos sotho e nguni é muito mais recente que as  outras divisões e ocorreu na região onde atualmente vivem os povos que  falam essas línguas, isto é, na própria África do Sul, muito depois de  lá se terem estabelecido os povos de língua bantu. Como veremos, os  povoamentos típicos dos Tswana e outros Sotho e dos Nguni já existiam  por volta de 1500, sendo razoável sugerir que já havia ocorrido a  separação das línguas, o que nos daria como data-limite aproximada o ano  de 1600. Esses dados confirmariam as raríssimas tradições orais que  concernem principalmente às genealogias que remontam ao século XVI e a  períodos anteriores.
É impossível estabelecer relação direta entre os  dados arqueológicos e o aparecimento dos povos de língua bantu. Até há  pouco tempo, os arqueólogos associavam esses povos a comunidades que  praticavam a agricultura e a metalurgia, situando, portanto, sua chegada  nos primeiros séculos da era cristã. No entanto, mais recentemente, R.  R. Inskeep e D. W. Phillipson estabeleceram paralelo entre a expansão da  última época da Idade do Ferro, a Idade do Ferro Recente, que começou  por volta do ano 1600, e a difusão das línguas bantu na África  meridional. Eles se limitam a observar que a difusão dessas línguas e a  da cerâmica da Idade do Ferro Recente representam importantes mudanças  culturais e a última grande mudança cultural desse tipo de que temos  conhecimento. Em conseqüência, a chegada dos povos de língua bantu não  pode estar relacionada a nenhum período arqueológico ulterior.
Não se  pode afirmar que os Bantu tenham levado técnicas agrícolas superiores  ou ferramentas melhores a toda parte. O que se deve enfatizar, no  entanto, é que talvez novas técnicas tenham contribuído para o  crescimento da produção e favorecido novas formas de sedentarização. A  chegada dos Bantu não foi bem "o acontecimento", como querem fazer crer  antigos pesquisadores.
Deve-se admitir que por um longo período houve  interação entre as línguas shona, venda e tsonga na região entre o  Zambeze e o Limpopo, o que poderia explicar o grande número de termos  aparentados em nguni e sotho, e também a semelhança considerável das  práticas sociais (herança patrilinear, circuncisão e poligamia). Os  mesmos costumes e as mesmas formas de organização sociopolítica são  resultado de longa coabitação. Deve-se observar que todos os grupos,  afora os Nguni, têm totens correspondentes às linhagens ou clãs.
Os  historiadores concordam quanto às migrações bantu na África meridional,  mas é preciso se dobrar à evidência de que não houve invasão, e sim  infiltração de pequenos grupos. As tradições orais não foram  suficientemente examinadas, nem criticadas judiciosamente; elas poderiam  fornecer informações que remontam ao século XVI e até a períodos  anteriores. Os arqueólogos não deveriam ignorar esses dados.

Ao norte do Ukhahlamba

A  segunda Idade do Ferro, ou Idade Média do Ferro, ocorreu entre 1100 e  1600. Esse período é representado por aldeias descobertas na região de  Olefantspoort, em Melville Koppies e em Platberg. As aldeias compreendem  dez ou vinte casas com chão de terra batida, dispostas num plano  circular e cercadas por paliçada. Nas ruínas foram encontrados dentes de  bovinos, ovelhas e cabras, utensílios de ferro e "grãos de milhete  carbonizados em bom estado de conservação".
As culturas datadas da  Idade Média do Ferro são, com certeza, de comunidades de língua bantu  (1100-1600) e quase certamente, segundo R. J. Mason, de povos  sotho-tswana. Nas aldeias podem ser encontradas algumas habitações com  paredes de pedra. Exceto no caso do estilo Leopard's Kopje, ainda não  foi possível encontrar nenhum sítio onde a passagem do início ao último  período I da Idade do Ferro Antiga apareça claramente.
Pode ser que  os arqueólogos tenham de abandonar esta importante distinção, ao menos  em sua forma atual. O único sítio em que é possível verificar a  transição fica em Eiland, no Transvaal central, onde o sal foi explorado  durante todo o período. A cerâmica da Idade do Ferro Antiga foi  substituída nos séculos XI ou XII por produtos de estilo Mapungubwe (na  tradição de Leopard's Kopje) e mais tarde pela cerâmica de Phalaborwa.  Não longe dali, o sítio de Silver Leaves (Tzaneen) mostra a mesma  evolução.
Cerâmica e estilo de vida bem diferentes foram descobertos  em Phala-borwa, um dos dois grandes centros produtores de cobre do  Transvaal na época, situado próximo do Olifants - afluente do Limpopo  que Vasco da Gama chamou, em 1498 de "rio do cobre" -, cerca de 80 km a  leste do Drakensberg. A mineração vinha-se desenvolvendo desde pelo  menos o século VIII, mas a povoação mais antiga, descoberta até agora  remonta a um período entre 960 e 1130 da era cristã. O estilo da  cerâmica não tem equivalente na Idade do Ferro Antiga, mas ela é  praticamente idêntica à que é feita hoje pelos habitantes de Phalaborwa.  Vários séculos antes do início do período aqui estudado, a cerâmica já  tinha seu caráter atual, também encontrado entre os Lobedu, a cerca de  90 km ao norte. Isso prova que a cerâmica não é um barômetro para  mudanças culturais. Desde há alguns séculos, a sociedade lobedu vem se  diferenciando sensivelmente da de Phalaborwa, em particular no campo  político (é famosa por suas rainhas da chuva). A própria Phalaborwa  encontra-se agora na órbita cultural dos Sotho ao norte, mas em 1700,  como Lobedu, fazia parte do reino venda, e há motivos para se acreditar  que pelo menos no século XVII, senão mais tarde, os habitantes dessa  localidade falavam uma língua próxima do venda, e não do sotho. Desde  então, grandes mudanças vêm ocorrendo, mas que não se refletem na  tradição da cerâmica. A continuidade na região foi assegurada por  mineradores e comerciantes, que eram também ceramistas, os "indígenas"  das tradições orais, que os chamavam de "Salang de Shokane" e os  pretendiam diferentes - talvez porque fossem de cultura tsonga - e bem  inferiores a seus conquistadores, estes, ligados à tradição política  venda. Por outro lado, pode ser que alguns relatos que começaram a  proliferar recentemente na região a respeito dos contatos com caçadores  de língua não-bantu sejam fundamentados numa tradição autêntica. Parece  então que, entre 1100 e 1500, houve, nas planícies do Transvaal,  estabelecimentos agrícolas que comerciavam uns com os outros e trocavam  seus produtos artesanais. As minas de Phalaborwa eram fonte de objetos  de ferro num raio de pelo menos 30 km, e fonte de cobre em distâncias  ainda maiores. É provável que parte desse cobre tenha alcançado o baixo  Limpopo e, por via terrestre, a costa. Tzaneen fornecia sal à região, e,  mais ao norte, o cobre extraído em Messina era comerciado em ampla  área. R. T. K. Scully levantou a hipótese de que a sociedade tornara-se  Estado graças ao desenvolvimento da indústria metalúrgica de Phalaborwa e  ao comércio dela resultante. As chefarias instaladas em toda a planície  do Transvaal, a princípio pequenas, tinham ainda de lutar com bandos de  caçadores nômades e competir com chefarias vizinhas. Mas, no fim do  período que aqui estudamos, ou talvez no século XVII, a administração  dos Venda subjugou-as, unindo-as num só reino.
No triângulo ao norte  do rio Vaal, delimitado por Rustenburg, KIerksdorp e Johannesburgo,  foram encontrados vestígios de um grupo de aldeias pertencentes à mesma  tradição, numa escala de datas entre 1060 e 1610, e lá R. J. Mason 18  realizou algumas escavações. Sobre os pavimentos de gesso das casas  redondas havia plataformas, também de gesso, enquanto as paredes eram de  materiais perecíveis, provavelmente paliçadas de madeira ou, dada a  escassez de madeira no alto veld, bambu revestido de barro. Cultivava-se  o milhete e criava-se gado, inclusive caprino e ovino. As casas eram  dispostas ao redor de um espaço oval ou circular, com área de mais ou  menos 1 ha, que, certamente, devia ser um curral (kraal) para o gado. As  aldeias eram pequenas, compreendendo apenas de dez a vinte cabanas, ao  menos nos três sítios estudados. Esse tipo de estabelecimento provoca  grande interesse, pois precedeu a construção em pedra, que, segundo as  evidências atualmente disponíveis, se difundiu amplamente no alto veld  do Transvaal no século XVII. Como apenas quatro, das centenas de  estabelecimentos identificados no Transvaal central e meridional, foram  escavados, é bem possível que pesquisas futuras descubram sítios com  muros de pedra, datando de período anterior a 1500. Isto é ainda mais  provável quando se sabe que, no Estado Livre de Orange, um tipo de  construção em pedra, o tipo N, remonta pelo menos a 1400-1450.
Há  sítios do tipo N ao norte e ao sul do alto Vaal, até o rio Wilger, a  oeste, e até o Drakensberg, ao sul e a leste. É uma área de boa  pluviosidade e rica em pastagens. A disposição dos celeiros, estábulos e  habitações com um muro cercando todo o estabelecimento é forte  evidência da economia mista de agricultura e de criação de gado. Após  1600, o tipo N transformou-se em outros tipos de estabelecimentos, que  se difundiram por toda a região do Estado Livre de Orange situada ao  norte do atual Reino de Lesoto. Uma variante desses tipos posteriores,  que apareceu o mais tardar em 1600, tem evidente caráter tswana.
Somente  pesquisas futuras poderão determinar se os estabelecimentos  construídos, não em pedra, mas em outros materiais, encontrados no  triângulo Rustenburg – Klerksdorp - Johannesburgo, bem como, talvez, um  sítio não datado de Lydenburg, mais a leste são, de fato, precursores  dos estabelecimentos em pedra do tipo N ou próprios do Transvaal. Ao  norte do Vaal, os sítios interiores à construção em pedra e os que  correspondem aos estabelecimentos de tipo N ou de tipo próximo  encontram-se na região entre os rios Marico e Crocodilo, território  associado à dispersão de alguns grupos sotho, pelo menos desde o século  XVI. Embora tentadora em vista dos dados de que dispomos atualmente, a  hipótese de R. R. Inskeep, que identifica esses estabelecimentos  anteriores à pedra e os de pedra ao modo de vida sotho e, indiretamente,  ao grupo lingüístico sotho, ainda é prematura. As tentativas feitas  anteriormente por R. J. Mason para relacionar diferentes estilos de  cerâmica do período compreendido entre 1100 e 1500 naquelas aldeias a  certos grupos tswana ainda não foram submetidas à prova do tempo.  Somente pesquisas futuras poderão resolver esse problema.
No entanto  os argumentos a favor dessa hipótese têm peso. Os estabelecimentos em  pedra do tipo N estão na origem de grupos posteriores, um dos quais é  bem característico dos Tswana (habitações bilobadas). Por outro lado, é  válido traçar paralelos entre a difusão de novas tendências  arquitetônicas e as tradições orais que narram os movimentos das  famílias governantes, pelo menos depois do século XVI. Na região  correspondente ao atual Zimbábue, os governantes fizeram construções em  pedra durante o período que ora estudamos, e as ruínas em pedra nessa  região ou em Moçambique estão associadas à expansão dos grupos  dirigentes. A idéia do uso de pedras para a construção de paredes pode  ter vindo daí. Mas talvez seja uma invenção local da região de  Johannesburgo, onde as pastagens são boas, mas há pouca madeira. De  qualquer forma, ao adotar esse material, os dirigentes políticos  estabeleceram, sem dúvida, normas de prestígio e estilos que asseguraram  a difusão desse novo tipo de habitação.
Os sítios de ocupação ao  norte do Drakensberg mostram mudanças drásticas evidentes após 1100. O  gado assumiu muito maior importância na economia em relação ao período  anterior. O grau de organização local também cresceu, pois, durante o  período em estudo, as dimensões dos estabelecimentos aumentaram  consideravelmente. Os dados disponíveis cor respondem à impressão geral  transmitida pela tradição oral de que os Estados começaram a se  constituir no século XVI. Se compararmos essa situação com a do veld  (Phala-borwa), ou com a da Botsuana, as transformações ocorridas perto  do Vaal são ainda mais espetaculares. As mudanças nos tipos de  estabelecimento e na cerâmica parecem ter sido bem marcantes. Como se  explica tal fato?
É bem possível que a chave do enigma esteja na  Botsuana, onde as pesquisas de J. R. Denbow levaram à descoberta de mais  de 150 sítios datando de 800 a 1300. As escavações empreendidas em dois  sítios mostram uma evolução local contínua da fase Zhizo da cerâmica  Gokomere (Idade do Ferro Antiga) para os utensílios Tautswe. A maioria  dos sítios na Botsuana central (norte de Mahalapye) mostra claramente  uma pecuária intensiva. Alguns depósitos de estrume na região chegam a  ter 1 m de espessura. A subsistência dos habitantes da área vinha, em  parte, da pecuária: o meio era muito favorável a essa atividade, graças  às boas pastagens do veld e às nutritivas folhas de mopane. Foi ali, e  não em Natal, como acreditava T. N. Huffman, que o gado parece ter-se  multiplicado. Os sítios da Botsuana mostram menos indícios' de comércio  com a costa da África oriental após o ano 100 da era cristã, fato que  não surpreende, pois o Zimbábue, e mais tarde o Mapungubwe, a leste,  começaram a centralizar a atividade comercial. Após 1300  aproximadamente, o número de sítios descobertos decresce rapidamente,  talvez porque o clima tenha se tornado mais árido - o Kalahari não é  longe dali - ou em virtude de um deslocamento da região de incidência da  mosca tsé-tsé, que teria forçado a emigração dos habitantes com seu  gado.
É muito tentador associar esse declínio populacional com o  aparente crescimento demográfico que teria ocorrido no oeste do  Transvaal ocidental e com as evidências de criação intensiva de gado.  Pode ser que alguns grupos que viviam parcialmente da pecuária se tenham  instalado com seus animais num meio mais favorável próximo do Vaal e  que os rebanhos tenham atraído outros grupos para suas comunidades. A  introdução da lobola (dote pago em cabeças de gado) e dos contratos de  clientela (para o gado) teria tornado isso possível, favorecendo os  proprietários dos maiores rebanhos. A lobola, a clientela e o pagamento  de tributo em cabeças de gado caracterizarão posteriormente as culturas  sotho e tswana. A travessia do Vaal fez-se acompanhar da adoção de uma  economia agropastoril e, mais tarde, da introdução da ordenha. Os  autóctones provavelmente criavam gado, mas apenas para o aproveitamento  da carne e não para a produção de leite.
Contra essa hipótese pode-se  argumentar que até agora não foi possível estabelecer qualquer ligação  entre a cerâmica Tautswe e aquela produzida nas margens do Vaal durante a  Idade do Ferro Recente. No entanto ainda não se fez nenhum estudo  comparativo nesse sentido, e estilos mais recentes adotados ao longo do  Vaal não devem necessariamente ser idênticos aos antigos estilos dos  imigrantes. Uma nova expressão pode ter-se desenvolvido do contato entre  o estilo indígena e o importado.
Achamos que foi isto o que  aconteceu. Mais tarde, uma mudança no meio ambiente natural ou humano (o  desenvolvimento da organização política do Zimbábue) da Botsuana  central levou à imigração em direção ao Vaal e ao aparecimento de modos  de vida e de línguas característicos dos Sotho-Tswana. Como veremos, é  provável que os povos que viviam parcial ou totalmente da criação de  gado tenham se deslocado mais para o sul e para o leste e influenciado  toda a população do sudeste e do sudoeste da África.

Ao sul de Ukhahlamba

Até  agora só três sítios testemunham a existência da Idade do Ferro Recente  ao sul do Drakensberg. Atualmente, o território é ocupado por povos de  língua nguni, cujo modo de vida é mais centrado no gado do que entre os  Sotho-Tswana; seus estabelecimentos são bem menores e menos  disseminados, e sua cultura também difere em muitos outros aspectos da  dos Sotho-Tswana.
Foram feitas escavações em Blackburn, próximo da  lagoa de Umhlanga, a cerca de 15 km ao norte de Durban, que trouxeram à  luz uma aldeia de mais ou menos 12 casas, duas das quais foram  completamente exumadas. Construídas num plano circular, com 5,5 m de  diâmetro, as estruturas parecem ter tido a forma de colméia e seriam  sustentadas internamente por uma ou mais estacas centrais. As paredes  provavelmente eram feitas de galhos e telhado, de sapé. Nesse aspecto  eram muito semelhantes às construções ngum e khoi-khoi. As dimensões da  aldeia correspondem igualmente ao modelo nguni e khoi-khoi. No sítio  também se encontrou sucata de ferro. Os restos de comida incluíam ossos  de caça, conchas e espinhas de peixe. Essas constatações sugerem ser  antes uma aldeia de ancestrais dos Khoi-khoi ou mesmo de pescadores da  costa, que um estabelecimento nguni. Como os Nguni, da mesma forma que  os Sotho- Tswana, são conhecidos pelo tabu de comer peixe, as  descobertas significam ou que esse tabu só se desenvolveu após o século  XI ou que o sítio pertencia a caçadores do litoral de língua khoisan. A  cerâmica, conhecida pela classificação NC2, tem uma vaga semelhança com a  Thembu (nguni). O mais interessante é que o mesmo tipo de cerâmica foi  encontrado numa grande área de ruínas próxima do Vaal: deve ter existido  contato entre as populações das duas regiões. Todos esses indícios  fornecem material para reflexão, mas é difícil chegar a uma conclusão,  pois nenhum outro sítio foi descoberto. R. R. Inskeep tem razão,  portanto, em se recusar a especular sobre esses contatos.
O sítio de  Moor Park, próximo de Estcourt, remonta ao século XIII ou XIV.  Localiza-se num promontório e é cercado por um muro que circunda não  apenas as casas, mas também as clareiras e terraços, o que prova que se  tratava obviamente de importante posto de defesa. Os vestígios das casas  parecem indicar que os pisos eram retangulares. Se esse dado for  correto, trata-se de um caso único em toda a África meridional. Seus  habitantes utilizavam o ferro, cultivavam o sorgo, caçavam e criavam  gado. Ainda não foi possível associar, com segurança, a nenhum estilo  conhecido as cerâmicas ali encontradas. Não fossem os pisos  aparentemente retangulares, o sítio estaria mais em consonância com as  atividades econômicas atribuídas aos ancestrais dos Nguni do que com os  vestígios da lagoa Umhlanga.
O último grupo de sítios foi encontrado  em 1978 perto da foz do rio Umngazi, no Transkei; representa ocupações  da Idade do Ferro Antiga, Média e Recente. Ali foram descobertas  evidências de fundição de ferro e um piso de cabana feito com barro  cozido semelhante aos pisos do alto veld. Não se fez nenhuma datação por  carbono-14, tendo-se deduzido a época a partir dos tipos de cacos de  cerâmica descobertos. Se se confirmasse uma data antiga para o piso da  cabana e para a fundição, nossa concepção tanto das ligações entre as  sociedades do norte e do sul do Drakensberg como da época em que os  presumíveis ancestrais dos Nguni se estabeleceram tão ao sul sofreria  mu- dança profunda.
No momento, a informação mais antiga que temos  sobre os Nguni provém dos sobreviventes dos naufrágios ocorridos no  século XVI nas costas de Natal ou do Cabo. As informações reunidas a  partir de tradições orais indicam que o Transkei foi habitado pelos  Xhosa, organizados em chefarias pequenas e instáveis, o mais tardar no  século XV. Antes disso, as famílias dirigentes haviam vivido durante  gerações perto das margens do alto Mzimvabu, mais especificamente perto  do atualmente desconhecido córrego Dedesi. Em 1959, M. Wilson afirmou,  com base em dados comparativos, que essas famílias lá viviam ao menos  desde 1300. Mas essa data não é precisa; apenas aproximada. É certo que,  por volta de 1500, os Nguni ocupavam quase todo o território no qual  viviam em 1800, apesar de nas regiões ocidentais estarem misturados com  os Khoi-khoi, a quem assimilariam progressivamente.
Os Khoi-khoi  deixaram marcas profundas nas línguas nguni ocidentais e orientais.  Segundo L. W. Lanham, tal influência só se iniciou quando as línguas  xhosa e zulu começaram a se diferenciar. Isso deve ter ocorrido  tardiamente, pois, pouco antes de 1600, um marinheiro que naufragou na  costa afirma que essas línguas eram apenas dialetos de uma única língua,  e ele havia percorrido praticamente todo o litoral. O khoi-khoi exerceu  influência bastante acentuada sobre o zulu e o xhosa, contribuindo,  respectivamente, com cerca de 14% e 20% do vocabulário. Essa influência  transformou o sistema fonético dos Xhosa, o que significa que ela já se  exercia quando o xhosa começou a se diferenciar do nguni oriental. Os  Khoi-khoi devem ter ocupado um território que avançava profundamente em  Natal, pois até as línguas nguni orientais foram afetadas.
Os Nguni  começaram a se dedicar parcialmente à criação de gado, preferindo esta  atividade à agricultura, provavelmente em razão da influência khoi-khoi.  Mas seus rebanhos não foram diretamente adquiridos dos Khoi-khoi, pois  estes criavam gado Afrikander, e os Nguni, a variedade Sanga, também  comum no norte do Drakensberg. Em matéria de criação de gado, a  influência dos Khoi-khoi foi bastante profunda, e os empréstimos de  vocabulário indicam que eles aprenderam a tratar dos animais com povos  menos numerosos. Foi com eles que os dirigentes xhosa aprenderam a  montar em bois e a usá-los como animais de carga. Do ponto de vista  religioso a influência khoi-khoi sobre os Xhosa também foi marcante; L.  W. Lanham considera isto uma prova de que os Khoi-khoi viviam em terras  nguni, presença mais tarde confirmada nas regiões fronteiriças  ocidentais pela sobrevivência de topônimos khoi-khoi. Outras indicações  da influência khoi-khoi podem ser encontradas possivelmente no tipo de  habitação e, com certeza, na prática que consistia em cortar uma falange  do dedo mínimo.
Fisicamente os atuais Nguni são mestiços do tipo  "negro" com o tipo "khoi-khoi". A miscigenação é bem pronunciada entre  os Xhosa, cujos gens parecem ser 60% khoi-khoi. Isto também é válido  para os Tswana. Os Ngun orientais têm menor porcentagem de gens  khoi-khoi, mas seu parentesco e ainda bem acentuado. Isso não é de  espantar no caso dos Nguni ocidentais, e mesmo no dos Tswana, pois seus  contatos com os caçadores e com os Khoi-khoi estão bem documentados; mas  surpreende constatar indicadores tão claros de mestiçagem nos Nguni  orientais.
Se juntarmos os elementos lingüísticos (que evocam a  influência khoi-khoi) aos indícios biológicos (que podem ser atribuídos  tanto aos caçadores como aos khoi-khoi), devemos concluir que, em dado  momento, grande número de Khoi-khoi viveu em Natal, ou que os Nguni e os  Khoi-khoi tiveram contato íntimo mesmo antes de os Nguni se instalarem  em Natal, o que é menos provável, pois, neste caso, a proporção de  palavras khoi-khoi seria mais alta nas línguas nguni orientais e  ocidentais. Parece então que os Khoi-khoi tiveram papel mais importante  do que o até agora reconhecido pelos historiadores. Como veremos, essa  influência não se limitou aos Nguni, mas se estendeu a grande parte da  África do Sul e da Namíbia.

Os Khoi-khoi




Em  1488, Bartolomeu Dias descobriu o Cabo da Boa Esperança; visitou Mossel  Bay e viu africanos, com os quais teve contato. No final de 1497,  durante uma expedição de Vasco da Gama, estabeleceram-se contatos com  africanos na baía de Santa Helena (ao norte do Cabo) e também em Mossel  Bay. Em 1510, o vice-rei das Índias, dom Francisco de Almeida, foi  morto, juntamente com 60 soldados portugueses, em Table Bay, num  confronto entre khoi-khoi e portugueses, o que prova que os Khoi-khoi  eram suficientemente organizados para aniquilar a coluna portuguesa  munida de armas de fogo. Um século e meio depois, os Khoi-khoi  enfrentaram os holandeses (1652), que queriam se instalar no Cabo.  Iniciou-se então uma longa guerra de extermínio dos indígenas.
Mais  recentemente, tornou-se claro que, do ponto de vista lingüístico, o  khoi-khoi pertence ao grupo tshu-khwe, da família de línguas khoisan,  que inclui também várias línguas faladas pelos caçadores da Botsuana  setentrional e mesmo uma língua falada na costa meridional de Angola. De  fato, a língua khoi-khoi, dividida em dois ou três dialetos, era falada  num território que, posteriormente, se estendeu do norte da Namíbia ao  Cabo e, mais a leste, até o rio Great Fish. Além disso, em determinado  momento, deve ter chegado a Natal, como mostra sua influência sobre o  nguni. R. Elphick observa que, conseqüentemente, o khoi-khoi era uma das  línguas mais faladas na África, e que a homogeneidade lingüística deste  grupo parece indicar uma dispersão bastante recente e rápida a partir  do berço dos Tshu-khwe. Os Khoi-khoi criavam gado de grande porte e  ovelhas de cauda grossa, montavam bovinos e usavam bois para transportar  seus bens e estacas para a construção de suas casas. Isso lhes dava  grande mobilidade, característica que se ajusta à difusão de sua língua.  Apesar das sensíveis diferenças em relação aos caçadores, seus  caracteres físicos também correspondem ao grupo "khoisan". A maioria das  diferenças pode ser atribuída aos efeitos de uma dieta diferente  (leite), apesar de outras, como as peculiaridades serológicas, não serem  facilmente explicáveis. Embora haja divergências nesses detalhes, todos  os antropólogos aceitam atualmente que os Khoi-khoi e os caçadores  pertencem à mesma entidade somática, o que confirma as conclusões  tiradas a partir da lingüística. Os Khoi-khoi pertencem à população de  caçadores da África do Sul.
Constata-se a presença dos Khoi-khoi no  sul da província do Cabo em 1488. Tendo em conta a homogeneidade de  língua em tão grandes distâncias, R. Elphick estima que os Khoi-khoi não  tenham chegado muito tempo antes dessa data, embora o trajeto da  Botsuana ao Cabo tenha durado pelo menos um século.
Os ancestrais dos  Khoi-khoi conseguiram obter gado em grande quantidade no norte da  Botsuana, e provavelmente desenvolveram a raça Afrikander, aprenderam a  forjar metais, mas não a fundi-los, e abandonaram parcialmente seu modo  de vida baseado na caça e na coleta. É muito tentador sugerir que alguns  sítios encontrados por J. R. Denbow na Botsuana constituem vestígios de  antigos estabelecimentos khoi-khoi, e não apenas campos abandonados por  povos de língua bantu. Embora controversos, os restos humanos de  Bambadyanalo, perto do Limpopo, também parecem ser indícios de  populações que se dedicavam, ao menos parcialmente, à criação de gado, e  pareciam fisicamente com os Khoi-khoi do século XI. O decréscimo  populacional na Botsuana após 1300 fornece-nos uma data não apenas para a  expansão dos agrupamentos humanos provavelmente de língua bantu, que  foram para o Vaal, mas também para o início da expansão dos Khoi-khoi.
Do  alto veld, os Khoi-khoi espalharam-se para o sul e sudeste, seguindo o  curso dos rios quando possível. Chegando à confluência do Orange com o  Vaal, uma parte desceu o Otange, até a Namaqualândia e a Namíbia, onde  alcançaram Sandwich Harbour antes de 1677. Outra parte foi para o sul  seguindo os cursos d'água, atravessou o Sneeuwberge e dividiu-se em dois  grupos: um foi para leste e para o interior, da costa até Natal; outro,  para oeste, chegando às maravilhosas pastagens na região do Cabo. Ainda  um ramo deste último grupo migrou pela costa norte até o rio Olifants e  juntou-se finalmente a seus irmãos da Namaqualândia.
Resta examinar  um ponto discordante antes de aceitar essa hipótese: os vestígios  encontrados em Middledrift. Este sítio arqueológico a céu aberto,  próximo do rio Keiskamma, data do século XI. Lá eram criados animais  domésticos, mas os utensílios não são da Idade do Ferro. Foram  descobertos apenas fragmentos de cerâmica e utensílios de pedra. Se  considerarmos Middledrift um sítio khoi-khoi, devemos abandonar a  hipótese acima, porque a expansão khoi-khoi remontaria a um período por  demais antigo, e talvez também porque as técnicas testemunhadas por  esses vestígios são muito rudimentares. Mas não há razão para atribuí-lo  aos Khoi-khoi apenas porque não corresponde a nossas idéias atuais  sobre a cultura dos povos de língua bantu! Pode-se aceitar  provisoriamente Middledrift como um sítio onde os caçadores adquiriam  seu gado, assim como, um milênio antes, os povos instalados ao longo da  costa do Cabo aperfeiçoaram a criação de carneiros. Os caçadores de  Middledrift teriam sido assimilados ou expulsos pelos Khoi-khoi.
A  expansão khoi-khoi afetou profundamente a vida de todos os habitantes da  África meridional. Mencionamos seu impacto sobre os povos de língua  bantu em Natal e no Cabo oriental. A hipótese mais aceita é a de que os  Nguni não encontraram os Khoi-khoi em Natal, e que progressivamente  repeliram ou absorveram os encontrados no Cabo oriental. O conjunto de  informações disponíveis, porém, contradiz essa hipótese. Os Khoi-khoi  encontraram estabelecimentos agrícolas dispersos a leste do rio Kei, mas  os conquistaram para assegurar seu domínio no Transkei e talvez mesmo  em algumas regiões de Natal. Levou um século, ou talvez dois, para as  comunidades agrícolas das planícies situadas entre o Drakensberg e o mar  alcançarem densidade suficiente para se tornarem mais poderosas  numericamente que outras populações, e poderem assim dominá-las e  absorvê-las. Isso explica por que os Xhosa adotaram tantos traços  khoi-khoi, o que não é incompatível com o advento da dominação xhosa no  século XVI.
A oeste, os Khoi-khoi influenciaram os Herero de forma  diferente, mas também marcante. Sem adotar a língua khoi-khoi, os Herero  acolheram seu modo de vida pastoral e provavelmente em parte a forma de  organização clânica. Parece que esses povos de línguas bantu ocidentais  encontraram os Khoi-khoi no oeste da Botsuana, de onde também emigraram  para a Namíbia, porém, mais ao norte que os Khoi-khoi. Não é possível  precisar quando isso aconteceu, mas não se pode descartar a hipótese de  uma data anterior a 1500.
Politicamente, os Khoi-khoi dividiam-se em  grupos de clãs, e, às vezes, quando o número de cabeças de gado  aumentava, formavam unidades políticas maiores, sob a liderança de  chefes hereditários. Era freqüente as relações entre as várias chefarias  terem por base o tributo, pelo menos no século XVII, pois os Khoi-khoi,  do Cabo ao Kei, faziam parte de um único sistema de tributos. A  organização política baseava-se na riqueza individual, enquanto o  sistema de herança e o regime matrimonial só transmitiam parcialmente a  riqueza de uma família para seus descendentes. Conseqüentemente, apesar  da grande distância entre ricos e pobres, os reveses da sorte podiam  ocorrer em apenas uma geração. Acontecia de os mais pobres abandonarem  esse modo de vida, voltando à caça e à coleta, como ocorreu com os  strandloopers ("vagabundos de praia") do Cabo. Os pobres de determinado  clã podiam unir-se para atacar um clã vizinho, apropriar-se do gado e  melhorar sua situação. A medida que o gado crescia, fortalecia-se o  sistema político, mas, se o número de animais se reduzisse por falta de  chuvas ou devido a uma epizootia ou ainda em razão da intensificação do  roubo de gado por criadores pobres, as tensões superavam os interesses  comuns, os conflitos se multiplicavam e os chefes mais ricos tornavam-se  as maiores vítimas dos ladrões, o que resultava na redução de sua  riqueza e de sua autoridade no grupo de clãs. Assim, se é fácil  compreender que a princípio os Khoi-khoi conseguiram impor-se aos  agricultores, menos organizados e com menor mobilidade, a longo prazo as  variações climáticas e as epizootias, assim como as pronunciadas  desigualdades sociais entre os próprios Khoi-khoi favoreceram os  fazendeiros, pelo menos, os do leste do Kei.
A presença dos Khoi-khoi  teve conseqüências mais profundas entre os caçadores e criadores de  ovelhas autóctones e entre os caçadores do litoral porque todos viviam  dos mesmos recursos, numa concorrência maior do que com os agricultores e  criadores de gado. Entre 1100 e 1500, os autóctones - todos nômades e,  em princípio, todos caçadores - tinham várias ocupações. Ao longo do  litoral, haviam se tornado quase sedentários e viviam dos produtos do  mar. Na costa ocidental do Cabo e às margens do baixo Orange, entre  Augrabies Falls e Prieska, criavam ovelhas de cauda grossa; no interior,  viviam principalmente da caça e da coleta de veldkost (bulbos e  raízes). Naqueles séculos, as regiões mais áridas do Karroo, as areias  do Kalahari e os planaltos mais frios provavelmente não eram habitados.  Em alguns pontos do leste, como talvez Middledrift, alguns caçadores  começaram mesmo a criar gado.
Com a chegada dos Khoi-khoi, os  criadores de ovelhas e possíveis criadores de gado bovino perderam seus  rebanhos e voltaram a caçar, ou tornaram-se clientes dos Khoi-khoi. Os  grupos que viviam no sourveld (estepe com terras ácidas) da costa ou nas  praias sobreviveram por tempo suficiente para ensinar aos Khoi-khoi  empobrecidos como se tornar strandloopers, mas, ao final, também foram  dominados pelos Khoi-khoi. No interior, os pastores e os caçadores  competiam com sucesso variável e se miscigenavam em graus diversos. Para  os Khoisan, os caçadores eram apenas "ladrões" (san), e os caçadores  consideravam, sem dúvida, os criadores de gado "larápios" que os  afastavam das melhores fontes de água e dos melhores terrenos de caça.  Em geral, por suas dimensões, os clãs khoi-khoi levavam vantagem sobre  os pequenos bandos dos competidores. Porém, quando o meio se tornava  mais hostil, os caçadores restabeleciam certo equilíbrio na medida em  que muitos criadores viam-se forçados a recorrer à caça, e alguns  chegavam a se integrar aos bandos de caçadores. Mesmo assim, o modo de  vida khoi-khoi impunha-se progressivamente. No século XVII, o khoi-khoi  havia se tornado a língua franca de todo o Cabo ocidental, o que  denuncia certa dominação cultural. Parece evidente que a expansão  khoi-khoi, qualquer que seja a forma exata que tomou, transformou a vida  de todos os grupos de caçadores autóctones. Desde o século XIX, ao  norte ou ao sul do Kalahari não há mais caçadores "em estado puro".

Conclusão

O  fato mais marcante do período que estudamos no presente capítulo foi,  ao lado da difusão da língua bantu, a expansão dos Khoi-khoi na África  meridional. Esta provavelmente se deveu a uma deterioração das condições  climáticas na parte do Kalahari situada na República da Botsuana ou por  uma grande mudança da área de incidência da mosca tsé-tsé, senão pelos  dois fatos. Qualquer que seja a causa, por volta de 1330, as regiões  centrais e setentrionais da República da Botsuana, onde se desenvolveu  uma forma original de economia pastoril, estavam sendo abandonadas.  Alguns povos da região não eram khoi-khoi, mas de língua bantu, e  levavam consigo seus rebanhos.
Na região do Zimbábue e no alto veld,  ao sul do Limpopo, o gado foi absorvido pela economia agrícola, e os  imigrantes, ao menos entre os ancestrais dos Sotho-Tswana, tomando o  poder, começaram a estabelecer chefarias no norte do Drakensberg. Não  sabemos ainda se alguns desses imigrantes chegaram a ir mais ao sul. É  possível que os ancestrais dos Nguni tenham adquirido mais gado do que  já possuíam, mas que o número de imigrantes tenha se mantido limitado.  De qualquer forma, os Nguni desenvolveram uma economia mais centrada na  criação de gado do que a dos Sotho-Tswana. Era uma inovação adaptada,  suscitada pela observação do modo de vida dos Khoi-khoi que invadiram  suas terras.
Os dados históricos ainda são bastante incompletos.  Mesmo que todas essas hipóteses aventadas sejam confirmadas por  pesquisas futuras, não teremos esclarecido o desenvolvimento de uma  economia pastoril, mesmo no norte da República da Botsuana, talvez entre  800 e 1300. Tampouco saberemos a quem atribuir essa evolução. Ela  provavelmente não poderia ser atribuída aos povos de língua bantu, pois  muitos termos de pecuária da África meridional não são de origem bantu  oriental. Poderiam ser de origem khoisan - um historiador os atribui às  línguas do grupo sudânico central. No entanto, até o momento, os  argumentos invocados em apoio a essa tese são por demais frágeis. Com  efeito, seria necessário provar que populações de línguas do grupo  sudânico central saíram em massa do nordeste do Zaire indo até a  Botsuana e ao Zimbábue, e que esta expansão precedeu à dos povos de  língua bantu. Estamos mais inclinados a crer que aqueles termos de  pecuária são de origem tshu-khwe, e que foram os ancestrais dos  Khoi-khoi que, durante cinco séculos, aperfeiçoaram o modo de vida  pastoril. Eles adotaram a criação de gado, mas não quiseram abandonar as  tradições de nomadismo e caça.
Existem ainda muitas dificuldades  para delimitar as realidades históricas da África meridional. Muitos  pontos permanecem obscuros no estudo das migrações bantu:
"Se os  Nguni é os Sotho estiveram reunidos numa determinada época, quando e  onde se separaram? Que caminhos seguiram em sua migração para o sul?  Quando atravessaram o Limpopo?"
Outra dificuldade vem do fato de que a  maior parte dos dados arqueológicos ao sul do Limpopo foi recolhida no  Estado Livre de Orange e concerne aos Sotho-Tswana. Para termos uma  síntese dos nossos conhecimentos, devem ser feitas pesquisas  complementares no sul de Moçambique, na Namíbia, na Suazilândia, no  Lesoto e na Botsuana.

bottom of page